Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, outubro 29, 2007


Foto: ZH por Fernando Lemos.

O Tolerância Zero é brasileiro e, agora, gaúcho


Jamais uma iniciativa de segurança pública teve tanto marketing quanto o programa de “Tolerância Zero”, levado a cabo pelo então Prefeito de Nova York e agora potencial candidato republicano à Presidência dos EUA, Rudolf Giuliani. O aspecto mais conhecido do programa é aquele que foi baseado na “Broken windows theory”, elaborada pelo Sr. James Murphy, na qual se prega que locais deteriorados (broken windows) instigam a prática de delitos. Com isso, extrai-se a conseqüência que deu nome ao programa: não se pode tolerar “pequenos” delitos, sob pena da prática disseminadas dos “grandes”.

Poucos sabem que esse programa também foi inspirado pelo livro “The Bell Curve”, um libelo racista que atribui a pobreza ou o fracasso econômico à pouca inteligência das classes baixas (mais ou menos como o cientista James Watson recentemente declarou), tudo financiado pelo rico Manhattan Institute (qualquer semelhança com o “Fim da História”, de Fukuyama, não é mera coincidência – “inteligência” se compra também). Também não se divulga a ausência de qualquer substrato técnico razoável nas obras dos “inspiradores” do Tolerância, facilmente derrubável por qualquer criminólogo, nem que cidades dos EUA que adotaram estratégias como o policiamento comunitário chegaram a reduções semelhantes das taxas de criminalidade, inclusive devido do boom econômico dos EUA na década de 90.

Tampouco se fala que a estratégia de “Tolerância Zero” recaiu em índices aberrantes sobre pobres e negros, sem que tenha sido estendida aos “cidadãos de bem” de classe média brancos que igualmente praticam delitos. A proporção de prisões, apesar de a maioria da população ser branca, era de 7,5 negros para cada branco e os negros constituíam ¾ da população encarcerada pela legislação de drogas. Qualquer criminólogo que tenha passado pela virada do labelling approach sabe que o crime é cometido em todas as classes sociais e raças, mas apenas uma parcela (mais vulnerável) é punida. Basta vermos os índices de consumo de drogas nos EUA para rirmos das estatísticas de prisão em correlação com os crimes cometidos. Significa dizermos: pobres e negros de fato cometem delitos, mas não são os únicos.

O que aconteceu nos EUA foi, como nos mostra Loïq Wacquant, um recuo do “Estado Social” em direção a um “Estado Penal”. Os problemas sociais passaram a ser resolvidos por meios penais, a ponto de hoje, mais de uma década depois, o problema do encarceramento massivo – que bate recordes mundiais e lidera com muita distância -– começar a preocupar pessoas sem vínculos com o problema criminal, como pensadores da filosofia política e da sociologia. A quem pareça óbvia a correlação entre taxa de prisão e crimes cometidos, basta ver que, nos países da Europa, as taxas de delitos são as mesmas dos EUA sem precisar recorrer ao mesmo nível de encarceramento.

Para que não soe tendencioso, destaco que o programa teve aspectos positivos, que qualquer pessoa de bom senso concorda: reforma na Polícia, com expulsão de corruptos, melhora nos vencimentos dos policiais, aproximação da comunidade etc.


Mas o “Tolerância Zero” não foi inventado pelos EUA. Ele existe há tempos no Brasil, pelo menos desde que o Presidente Washington Luís (1926-1930) declarou que “a questão social é um caso de polícia”, frase que poderia ter sido lema do programa norte-americano.

Agora entro propriamente no tema que me interessa.

Não é novidade para ninguém que não seja ingênuo que o Governo Yeda iria aderir a esse ideário. O perfil conservador da Governadora não deixava dúvidas de que, com a sua posse, a política de segurança seria do estilo “Lei e Ordem”. A nomeação de Enio Bacci foi a gota d’água, com todo seu discurso sobre o cidadão de bem e a bandidagem. Depois, ele caiu. Mas está claro que a política é do Governo, não do Secretário.

Uma vez perguntada, na insuspeita ZH, o que pensava sobre eventuais mortes de inocentes, Yeda respondeu: o importante é reduzir a criminalidade. Ora, é preciso ver, em primeiro lugar, que as polícias brasileiras ainda têm treinamento baseado nos métodos da Ditadura Militar, e que uma não-assunção clara do discurso que garante os direitos fundamentais significa, em outros termos, dar um alvará para a arbitrariedade policial. O Governante, no contexto atual, precisa ter um discurso ativo – por circunstâncias político-culturais brasileiras. Omitir o problema do respeito aos direitos fundamentais é, em outros termos, admitir a arbitrariedade – o Estado Policial.

Sem cair no simplismo de considerar criminosos como “vítimas” do sistema ou algo do gênero, é preciso reconhecer que a criminalidade carrega uma equação complexa no Brasil. Não reconhecer nos criminosos “coitados” não significa cair no simplismo inverso, de trata-los como malvados que atacam o “cidadão de (ou do) bem”.

Mas é propriamente o avanço de algumas iniciativas dos últimos dias que tem me chamado atenção. Com o apoio midiático, a Brigada Militar tem provocado violentos conflitos com moradores de rua, camelôs e agora flanelinhas. Não podemos dizer que esses “Outros”, que têm tão pouco em comum conosco, não suscitam efetivamente problemas no espaço público. O problema é que, no Brasil, como eu já disse, a equação é mais complexa.

Não vivemos num contrato social em que todos têm direitos e obrigações. Essa maldita ficção jurídica que deu certo em alguns lugares é tremenda falseadora da realidade no Brasil. No Brasil, há quem não tenha direitos. Mas a elite e a classe média, apesar disso, insistem em cobrar apenas as obrigações. Ora, sem a contrapartida, essa cobrança não é justa. Não temos sistemas públicos eficientes, não promovemos justiça social [se isso soa marxista, leiam John Rawls], não temos cidadania mínima. Como exigir “disciplina pela disciplina”?

Por isso, todos os modelos estrangeiros têm que ser adaptados. A situação do Brasil é mais complexa. Temos ações afirmativas e focos de escravidão. Camelôs e bolsa de valores. O Brasil é muito complexo. O fato é que o Poder Punitivo, com muita violência e apoio da elite e classe média, só cai sobre os vulneráveis. O “criminoso” é o jovem pobre e negro, não o meu vizinho que comete evasão fiscal.

É essa “imagem”, esse estereótipo de criminoso que começa a se aproximar do nosso horizonte. A política de segurança do Governo Yeda tende a fortalecer essa imagem, aproximando a polícia de pessoas quem não necessariamente têm qualquer vínculo com o delito, a não ser o estereótipo. É o camelô que comete sonegação fiscal, não o dono do restaurante que não dá nota fiscal nos buffets e deixa uma calculadora ao lado do caixa. As seguidas reportagens que identificam “antecedentes criminais” são igualmente perigosas, pois os “antecedentes” da polícia não são condenações e, mesmo que fossem, o fato de ter cometido um delito não significa que se vá cometer outros.

Para quem pensa que isso é bobagem, basta lembrar que o nazismo foi construído com base em estereótipos. De um lado, o alemão ariano, puro e superior. De outro, o judeu venenoso, a chaga social. O extermínio de judeus foi, àquela época, uma forma de “higiene social”. Troquem ariano por “cidadão de bem”, judeu por “bandido” (agora em sentido amplo para abranger pobres indesejáveis) e a “higiene” do Reich pela higiene do “espaço público”.

Qualquer semelhança com a nossa realidade NÃO é mera coincidência.