Mox in the Sky with Diamonds

domingo, outubro 07, 2007

FIDELIDADE PARTIDÁRIA SIM, MAS... POR DECISÃO DO SUPREMO?

Uma das características de um pensador político não-conservador é admitir a possibilidade de que a democracia liberal sofra alguns ajustes dependendo da criatividade do povo que a cria. Não existe modelo fixo: temos, por exemplos, as democracias dos EUA ou da Espanha funcionando com arranjos institucionais distintos. O importante é a manutenção do cerne: o Estado de Direito, ou seja, a idéia de que não podemos ser casuístas ou personalistas -- as regras valem para todos, inclusive aos governantes [por isso começa a saltar aos olhos que o regime de Chavez começa a não ser mais democrático, embora seja possível um caudilho fazer um governo dentro da democracia].
A decisão do Supremo que institui a fidelidade partidária é problemática. Não há dúvidas que é praticamente pacífico na sociedade e para os próprios políticos que a fidelidade partidária é necessária. É uma forma, ainda que um pouco transversa, de 1) fortalecermos os partidos, obrigando-os a ter um programa, e 2) tentar amenizar o problema da fisiologia, fazendo com que os políticos que troquem de partido percam o mandato.
A decisão do Supremo acertou, contra burrice em geral da imprensa, em mais um aspecto: ao contrário dos jornalistas burros que acham ser "mão leve" garantir ampla defesa aos políticos e fazer decisão irretroativa, a decisão do STF acerta por uma razão simples, resolve um duplo problema: 1) se aderirmos à idéia de que o deputado troca de partido ou é expulso por causa da mudança programática, sua decisão é justa, e por isso não deveria perder o mandato; 2) mas isso poderia ser usado por fisiologistas que, votando com Governo, cavariam a própria expulsão, aproveitando-se da regra automática. Com um processo, é possível ouvir e decidir cada caso concreto [o que sem dúvida será complicado em relação a pelos menos 75% dos partidos, que sequer sabemos o que pensam]. A regra geral intimida as mudanças.
Mas vejam o problema: não há NENHUM dispositivo constitucional que preveja a fidelidade partidária [por isso totalmente correta a irretroatividade]. Também não é "óbvio" que o mandato pertença ao partido. Os brasileiros têm muito mais a cultura de votar no candidato, aliás. É tipicamente um problema POLÍTICO, que cabe ao parlamento, enquanto instância de decisão política, resolver.
Isso chama atenção para um aspecto particular do Brasil, que vem ocorrendo nos últimos anos, desde a mudança do perfil do STF pelo Presidente Lula: o Supremo, de certa forma e a partir de decisões do TSE, vem tomando as rédeas de "moralização" da política brasileira. É um papel atípico, que nada tem relação com sua função primordial, a de garantir a Constituição brasileira [isso existe?].
Os liberais-conservadores, até com certa razão, estão de cabelo em pé. Reclamam que o STF está "juridicizando" os conflitos políticos, avançando o sinal. E, de fato, como eu dizia, aparentemente o STF vem avançando o sinal mesmo.
Mas isso é ruim? Não necessariamente. Nos EUA, a Suprema Corte fez isso várias vezes. O caso mais claro é o do aborto, em que, apesar de insistentes leis estaduais criminalizadoras, todas são declaradas inconstitucionais, baseado numa interpretação elástica e bem forte da Constituição norte-americana. Exerceu um papel pró-ativo na defesa dos direitos civis [abstraída toda discussão, recheada de excelentes argumentos dos dois lados].
Vamos ficar, então, de vigília. Subversões excessivas da ordem constitucional podem balançar os pilares do Estado de Direito, coisa que é demasiado preocupante. Mas talvez, dentro do contexto brasileiro, o STF esteja cumprindo um papel novo, próprio da nossa democracia liberal.
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OS LIMITES DA MODERNIDADE
Hoje em dia nada é mais espinafrado que a suposta "pós-modernidade". Nem mesmo alguns que usavam o conceito, como o genial sociólogo Zygmunt Bauman, o utilizam. A história desse conceito pode ser resumida da seguinte forma: criado por Jean-François Lyotard na década de 70, sinalizava o fim das "metanarrativas", ou seja, das teorias que davam explicação para tudo. Lyotard, um ex-marxista antes ligado à Escola de Frankfurt, deu-se conta de que marxismo, freudismo, liberalismo e outras "grandes teorias" eram insuficientes para dar conta da complexidade do real. Lyotard acaba atacando a própria ciência, tentando provar, com base nas próprias descobertas científicas, que elas mesmas provam existir um limiar de "indecibilidade", um resto que foge às teorias, que nem mesmo a ciência dá conta.
Os norte-americanos das Universidades ligados aos movimentos de direitos civis, então, aliando isso às idéias de "mitologia branca" de Jacques Derrida e as teses sobre o poder de Michel Foucault, acabaram vulgarizando o termo pós-modernidade, reduzindo tudo à cretinice de que "tudo é relativo" e que qualquer teoria é afirmação do poder, seja ele machista, rico, branco ou imperialista.
Foi essa utilização imprudente das cuidadosas teses de Derrida, Lyotard e Foucault que "queimaram o filme" da chamada pós-modernidade, banalizando-as a ponto de torná-las fragéis como vidraças, facilmente "quebradas" por físicos, biólogos e filósofos analíticos, todos em um bloco conservador que defendia os valores "modernos" do Iluminismo.
Hoje, depois de algum tempo, dá para tentarmos conversar novamente. Inúmeros filósofos, como Simon Critchley, Richard Bernstein e Richard Rorty, por exemplo, tem tentado recuperar as obras dos franceses sem a deturpação que estudantes fracos acabaram popularizando. Foucault, Lyotard e Derrida têm muito a nos dizer, desde que nós sejamos prudentes com suas afirmações. Temos que os ler com parcimônia, tentando entender o que eles desejam provar, sem querer destruir tudo que veio antes.
Já escrevi por aqui sobre Derrida e Foucault, tentando mostrar que ambos não são meros relativistas, que negam que exista a "verdade", mas apenas acentuam, baseados na "faticidade" que Heidegger descobriu, que nosso mundo é muito mais rico que os sentidos que nos dá a "objetividade" própria da ciência e da filosofia, e que essa "objetividade" é, como tal, forma de poder, pois "amortece" outras verdades tão verdadeiras quanto elas [basta pensar, por exemplo, na arte, na ética, na política]. O "regime de verdade" de Foucault não tem nada a ver com relativismo, é uma forma de mostrar como uma verdade [no nosso caso, a técnica] sobrepuja outras. Derrida, por sua vez, adorava avacalhar as teorias dos filósofos, mostrando como seu suposto "fechamento" nunca fechava, exatamente por saber que os conceitos não podem se sobrepor à realidade, como Hegel queria.
Mas eu escrevia sobre os "limites" da Modernidade. Onde quero chegar com isso?
Via de regra, estamos ao lado do Iluminismo. Ele nos deu um monte de coisas que precisamos: ciência [e com isso remédios, Internet, etc.], garantias [não posso ser processado só porque a Yeda quer, p.ex.], etc. A pós-modernidade é o que expõe os "limites" da "Modernidade", entendida enquanto tempo das "Luzes" que começa lá em Descartes, ainda que com seu auge nos séculos XVII, XVIII e XIX.
O caso do véu muçulmano na França, como já escrevia desde que lei surgiu, é um dos sintomas do limite. Os franceses proibiram o véu muçulmano porque proíbem todos os símbolos religiosos nas escolas. Para eles, é enquanto "cidadão" que o francês deve freqüentar a escola pública laica.
O caso do véu expõe que a "secularização", suposta retirada da religião do mundo do Estado, transforma-se em "laicização". Isso é ruim? Em princípio, não é. Mas, voltando a Derrida, temos a crença, nos franceses, na "mitologia branca". A idéia de que as Luzes só trazem a neutralidade e a verdade faz com que eles não percebam que a "laicização" também é uma espécie de mitologia, similar às religiões, que organiza um "ethos" a que o indivíduo percente. Quando eles retiram o direito das islâmicas irem de véu à escola, estão impondo um "ethos", violentando sua identidade. A idéia liberal de tolerância, que John Rawls soube tão bem teorizar e criar uma espécie de proposta para que todos convivamos bem, acaba dando lugar a um "projeto de mundo" totalitário que esmaga a identidade do "muçulmano" para substituí-lo pelo "cidadão". É quando o Iluminismo deixa de ser um projeto de "impor o mínimo para que possamos conviver sem violência" para ser, ele próprio, um "modo de vida".
Os filósofos pós-modernos denunciaram exatamente essa violência típica da Modernidade, a violência da "homogeneidade". Chegaria um momento em que a "tolerância" deixaria de ser um modo de vida mínimo em comum para se tornar um projeto de pureza do cidadão, pois tolerância é a "tolerância" do mais forte. Um projeto até certo ponto interessante: ateu, livre, igualitário. Mas, por outro, violento com todo aquele que não adere, pois acredita-se "branco", ou seja, transparente.
É nessa tensão que os filósofos, antropólogos, juristas, sociólogos e todos os estudiosos da humanidade deveriam escrever, hoje em dia. Uma tensão entre um projeto de tolerância, de instituições justas, etc., e o respeito pela diferença, a negativa a que o liberalismo se torne, ele mesmo, uma metanarrativa. Eu tento isso, acreditando que uma parte do problema foi diagnosticado pelo filósofo Emmanuel Levinas, quando disse que o Mesmo sempre quer absorver o Outro. Mas isso já é assunto para outro post.
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NÃO PERCA
Não perca a chance de conferior dois álbuns sobre os quais já escrevi aqui: o do Spoon, "Ga Ga Ga Ga Ga", deliciosa amostra de indie pop da melhor qualidade; e o The Clientele, o álbum mais beatle que escutei depois dos próprios.
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Trilha sonora do post: Spoon, "Don't you Evah".