Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, julho 03, 2007


.
Olhar o Outro


Friedrich Nietzsche foi, sem dúvida, um dos gênios da humanidade. Nietzsche foi um dos primeiros a denunciar, a partir de argumentos filosóficos, a crueldade do cristianismo ao exigir um ascetismo absoluto das pessoas. O indivíduo era soterrado por uma moral que lhe esmagava os instintos, jogando sobre ele a culpa e o ressentimento. Certa vez, no "Crepúsculo dos Ídolos", Nietzsche dizia aos pregadores que odiavam a vida [coisa comum àquela época: é preciso ver que estávamos em uma transição ainda, e elogiar o "céu" e depreciar a "terra" era algo bastante comum]: "se não gostam da vida, deixem ela, morram logo". E, a partir da sua filosofia da tragédia, criou a categoria do dionisíaco para um sim incondicional à vida, inclusive aos instintos humanos.

Nietzsche foi o nosso grande libertador da armadura do puritanismo. O lado inquisitorial e ascético do cristianismo se viu soterrado numa das críticas mais demolidoras já efetivadas no âmbito da filosofia. Foi a partir da sua lição que filósofos como Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard e outros começaram a realizar uma crítica da nossa sociedade em geral, exibindo os dispositivos perversos de repressão que se encontravam escondidos. Não apenas eles, mas fundamentalmente a psicanálise, começada em Freud [cujo discurso remetia, queira-se ou não, a Nietzsche], foi responsável por destravar a máquina de repressão em que vivíamos e permitir ao sujeito gozar, sem culpa, até onde isso é possível.

Essa "libertação" foi bastante importante. O movimento de maio de 1968 é o marco representativo desse momento, que deu ascensão a movimentos feministas, negros, ambientais, homossexuais, etc. Tudo isso é importante e não pode mais ser descartado.

No entanto, quando lemos a reportagem dos cariocas [prestem atenção no noticiário: a imprensa utiliza um discurso double bind: ao mesmo tempo que "tenta" os tratar como criminosos, jamais utiliza o termo ou "bandido" ou algo do gênero] que agrediram a empregada doméstica é sinal de algo que está ocorrendo.

Creio que Nietzsche realizou apenas parte da tarefa ética. Ao nos libertar das amarras da repressão, ele prestou grande serviço. Mas é Emmanuel Lévinas o filósofo que, agora, nós temos de ouvir.

Lévinas foi o primeiro a falar, de forma absolutamente veemente, do Outro. Kant, Nietzsche, Heidegger, Deleuze e a grande maioria dos filósofos sempre se concentram na construção do "Eu" - de um "eu" mais livre, mais autêntico, menos ressentido. Mas o "Outro" fica esquecido. A categoria que Lévinas cunhou para tratar desse "Outro" é a alteridade. A alteridade significa: o Outro é exterior a mim, o que penso sobre ele não é, em absoluto, aquilo que ele é. Ele sempre é mais [por isso Lévinas trata o Outro como "infinito"].

Assim como Nietzsche, Lévinas também falou de ética. Mas ele saiu do esquema "solitário" desses filósofos. Sua ética se constrói, desde o início, não a partir de um sujeito pensante, que escolhe os princípios morais a partir do que sua razão o incita [por exemplo, a lei moral de Kant: aja como se todas as suas ações possam ser universalizadas e aplicadas a ti mesmo]. Sua ética se constrói inicialmente a partir do Encontro com o Outro, face-a-face. Leiam essas palavras de forma literal. É no face-a-face com o Outro, nesse encontro de rostos, que se dá o primeiro ato da ética. E, nesse primeiro ato, eu tenho duas opções: receber o Outro ou assassiná-lo.

Por "assassinar" entendam: não o enxergar. Não ver seu Rosto. Desviar o olhar, para concebê-lo tal como eu o imagino; e não como ele é, totalmente Outro. Recebê-lo significa vê-lo e ouví-lo como Outro, e não como o que eu quero que ele seja.

Parece que é essa engrenagem que faltou aos rapazes cariocas. Ao ver a mulher e considerá-la "prostituta", eles encobriram o que ela de fato é por um rótulo [estigma]. Com isso, não puderam enxergá-la. Sua exigência de gozar foi tanta que não tiveram qualquer sentimento em relação ao Outro envolvido, que ia ser espancado. Ele simples não existe.

O limite para o gozo -- que é legítimo e, repito, agradeçamos a Nietzsche por ele -- é o Outro. Esse Outro que teimamos em não enxergar.

Nada o que fazer?

A notícia estampada no site de notícias do Yahoo! é sintomática: "Paulistano não sabe como ajudar o país, diz pesquisa" é reflexo de um círculo vicioso que engessa a sociedade brasileira em uma armadilha que impede o fortalecimento da democracia.

Criados no paternalismo estatal, os brasileiros acostumaram-se a ter sua vida ditada de cima para baixo, em estratégias implantadas por meio de canetaços de coronéis [em sentido amplo]. Do outro lado, os cidadãos e a imprensa acostumaram-se à postura passiva de simplesmente reclamar dos governantes, salientando condições como "cidadão de bem" ou "pagador de impostos", sem necessariamente apontar soluções concretas para os temas.

Isso gera um círculo vicioso: quanto menos se discute política, mais o poder político se afasta da sociedade civil, gerando um amplo espectro de corrupção e arranjos casuais. De outro lado, menos a sociedade se torna democrática e pior fica a qualidade da argumentação colocada em jogo na discussão. O erro, por isso, não é apenas dos governantes corruptos, mas também dos cidadãos acomodados que não se colocam em posição de debate sobre as questões que circulam. Quem, por exemplo, poderia me dizer que existe uma "ligação" qualquer entre os políticos do PMDB e a sociedade civil? Qual é o debate que o partido traz à tona? Pode colocar qualquer um no lugar de PMDB, que dá no mesmo.

O artigo salienta a necessidade de um "meio de campo". É verdade. É isso que o filosófo Jürgen Habermas, maior pensador vivo, buscou com a noção de "esfera pública". Esse seria o local onde circularia um debate de idéias "arejado", em que os participantes agiriam com o intuito de construir uma "democracia deliberativa", com a participação de todos e a crença no melhor argumento.

Tenho minhas reservas com o modelo de Habermas; mas deve-se reconhecer que, em termos de construção de consensos [como teoria da democracia, é outra história], é, hoje em dia, o melhor. Se a imprensa pode cumprir o papel desse meio de campo? Talvez. Mas desde que: 1) resista às pressões corporativistas da sociedade; 2) qualifique o debate, trazendo todos os argumentos que vem à tona e desistindo da tentativa de manipulação; 3) saia da agenda ditada pelo Governo, seja positiva ou negativa.

Hoje em dia, sou cético em relação a essa possibilidade. Também o grande engessamento da sociedade civil no Brasil é preocupante -- há um grande número de ONGs fraudulentas -- e não temos tradição de acreditar em iniciativas não-governamentais, como fazem, por exemplo, os EUA. Em suma, precisamos de agentes que cumpram esse "meio de campo" [a Academia é um deles], de forma a qualificar o debate político, aproximando os políticos da sociedade civil de forma a reduzir os espaços de corrupção por meio de uma democracia efetiva. E isso não se faz só reclamando dos políticos corruptos.


Trilha sonora do post: Smashing Pumpkins, "Bleeding the orchid".