A Desconstrução explicada para crianças
A palavra "desconstrução", que vem das idéias do filósofo Jacques Derrida, causa certa convulsão em certos meios intelectuais. Há quem fique de cabelo em pé.
Vejamos o seguinte artigo, escrito pelo Professor de Filosofia Desidério Murcho:
"Esta não é a interpretação mais popular do desconstrucionismo, e provavelmente não é a interpretação historicamente correcta. A interpretação mais popular é a ideia de que vale mesmo tudo — mas os desconstrucionistas são os únicos que o admitem. Quando alguém defende que algo é verdade, ou injusto, ou falso, está apenas a defender os seus próprios interesses — económicos, sociais, políticos, religiosos, etc."
Como pode um filósofo defender posição tão desonesta? É o que costumam fazer comumente muitos filósofos analíticos. Em vez de se dar o trabalho de LER o autor que criticam, eles preferem se apoiar em manifestações caricaturais do que o pensamento representa.
Quando Derrida disse que na desconstrução "vale tudo"? Jamais. Percebam como termina Desidério:
Um interesse oculto que parece muito comum é a falta de vontade para estudar imparcialmente e objectivamente de rerum natura, a natureza das coisas. É pura e simplesmente mais fácil defender um qualquer preconceito ecologista, industrial, religioso, científico, político, filosófico, estético, psicológico, etc., do que darmo-nos ao trabalho de estudar cuidadosamente a bibliografia relevante onde os argumentos disponíveis a favor e contra são discutidos, estudar os dados favoráveis e desfavoráveis à nossa posição, expor abertamente as nossas ideias convidando os colegas a criticá-las e a encontrar-lhes deficiências. Tudo isto dá muito trabalho, e é muito mais fácil declarar que tudo são manifestações ocultas de interesses. Mas se nos limitarmos a declarar que tudo são manifestações ocultas de interesses, nada nos impede de considerar que essa mesma declaração não é senão a manifestação oculta de um interesse muito comum na humanidade: preguiça intelectual.
Será que o problema da preguiça intelectual é de Derrida ou do próprio Desidério, que não leu o autor que critica?
Vou explicar, em breves linhas, o que significa a desconstrução.
Jacques Derrida é um filósofo pós-heideggeriano. Ele parte de uma perspectiva pós-metafísica, na qual já não temos mais alicerces para sustentar nossos "edifícios conceituais". Por exemplo: um filósofo medieval, como Agostinho, construía todas as suas categorias com um "ponto de apoio" - a existência de Deus. Esse ponto de apoio (no caso, teológico) é o que chamamos de "fundamento". A partir de Heidegger, como escrevi por aqui há uns dias, não há mais "fundamento", porque pensamos no "aqui embaixo", onde as coisas ocorrem, e não em um mundo platônico onde estaria a "verdadeira realidade" das coisas.
De que trata a desconstrução, então? Ela trata de desmanchar esse "fundamento" nos textos que Derrida trabalha. Derrida gostava de pegar um texto clássico -- por exemplo, a "Paz Perpétua", de Kant, ou "A Origem da Geometria", de Husserl -- e "desmanchá-lo" no seu fundamento. Como Derrida fazia isso?
Ele usava uma estratégia que poderíamos chamar de "transbordamento". Derrida "entrava" no texto, assumindo seus pressupostos e levando-os até os limites. Mas chegava um momento -- o próprio momento desconstrutivo -- em que esse texto não "fechava" mais. Levando o texto até o extremo, Derrida procurava mostrar que é impossível um "fechamento" que descreva toda a realidade. Ele procurava abrir o "Outro" do conceito, tornando indecidível a interpretação. A partir de um pressuposto não-metafísico (o texto não tem significado "transcendental", ele está jogado no mundo tal como é, e podemos lê-lo conforme quisermos), Derrida vai demolindo os textos que são objeto da sua análise. Quando ele diz "os textos desconstróem a si mesmos" está, na realidade, afirmando a impossibilidade de fechamento de qualquer texto, pois todo "Um" (conceito) comporta um "Outro", existindo, nesse intervalo, uma margem de indecibilidade. Todo texto carrega dentro de si essa possibilidade de se desconstruir.
A desconstrução, por isso, é esse movimento de deixar aparecer o Outro no texto. A partir do transbordamento do conceito, Derrida impede que ele se feche, exibindo sua limitação.
Quando os textos são lidos assim, eles deixam de ser investigações totalizantes sobre a realidade e passam a ser narrativas específicas, vinculadas a um momento histórico. Isso significa que, muitas e muitas vezes, eles estão atrelados a estruturas de poder. Por isso Derrida escreve sobre Lacan para falar do "falocentrismo". Ou, em outro momento, fala do "logocentrismo". São estruturas que estão por baixo de um discurso que se gostaria "transparente", mas não é. Isso Derrida chama de "mitologia branca".
Derrida nunca aderiu a qualquer "relativismo" que desmereça a ciência. O que ele desejava era demonstrar a insuficiência dos sistemas metafísicos para dar conta da realidade. Com isso, ele aderiu a uma missão ética: ao retirarmos a pureza do Um, mostrando seu Outro, estamos diante de uma exigência de justiça a esse Outro que é sonegado. Ele era um filósofo dos marginais, das margens. Por isso deixava tantos de cabelo em pé.