Mox in the Sky with Diamonds

segunda-feira, junho 04, 2007

O PODER DA CIÊNCIA - II








Aquecimento global. Imagine um debate entre um cientista ou um filósofo durão e, de outro lado, um filósofo do "pluralismo".

O cientista poderia argumentar que, graças à ciência, sabemos que o mundo irá se aquecer de modo a tornar a vida na Terra insuportável, graças à sua "precisão" e à sua "verdade".

O adversário poderia rebater: é somente agora, com a palavra da ciência, que o assunto passou a ser tratado de forma séria. Isso significa que a ciência tem um poder de dizer a verdade maior que outras instâncias. Esse poder foi determinante.

O cientista rebate: a ciência não tem poder algum, ela somente diz aquilo que é.

O filósofo responde: a ciência diz aquilo que é de acordo com aquilo que ela procura. Seu sentido é a objetividade, mas isso não significa que o "objetivo" científico corresponda "ao que é".

O cientista fica perplexo: como? Por acaso o senhor nega que exista a verdade? Nega que a "objetividade" exista?

Antes disso, vejamos, entretanto, o que se passou com o aquecimento global. Após vários anos de advertências de ambientalistas, finalmente a ciência se pronunciou, em relatório da ONU, dizendo que, efetivamente, o aquecimento global ocorre de fato e ele vai destruir o planeta, se não pararmos de emitir gases.

Há, portanto, dois elementos: 1 - a ciência disse, mediante seus métodos e procurando o "objetividade" dos fatos, que o aquecimento global está ocorrendo; 2 - a ciência, com sua força retórica, conseguiu movimentar mesmo a máquina do poder que parecia não se mover, quando se tratam de fatos ambientais.

O cientista argumenta, novamente: a ciência nada mais fez que dizer o que ocorre, ela disse a verdade sobre o aquecimento global. E a verdade é que, se não o estancarmos, iremos desaparecer, pois o planeta de tornará inabitável. Portanto, não há nenhum juízo de valor em jogo: simplesmente estamos diante da "objetividade" científica. O enunciado é neutro.

Será?

O filósofo responde: mas analisemos com maior cuidado as afirmações. Será que tudo se reduziu à equação do cientista?

Vejamos analiticamente. O cientista descobriu, objetivamente, que o aquecimento global existe (1). E, disso, retirou que devemos evitá-lo, do contrário desaparecemos (2). Será que há apenas uma verdade em jogo?

Eu pergunto: será que devemos evitar o aquecimento global ou será que devemos evitar o aquecimento global? Dependendo da entonação do verbo dever, aparece uma nova racionalidade em jogo. A pergunta pode ficar clara se pensarmos: temos direito a destruir o planeta? O planeta pertence unicamente ao ser humano?

Nesse caso, o que parecia neutro faz brotar um outro valor conjunto. O óbvio ("não devemos aquecer mais o planeta pois ele vai se destruir") pode, ou não, vir acompanhado de um outro juízo sobre o planeta Terra e nosso papel nele. Poderíamos formular o enunciado ontologicamente da seguinte forma: podemos destruir nossa casa, nossa morada (Terra <> oikos)? Ou, melhor ainda: será justo com o ecossistema como um todo o homem destruí-lo (Terra <> Gaia)? Será o planeta apenas um "campo de caça" que podemos utilizar a nosso bel-prazer, para nossa "felicidade"?

Há, portanto, uma outra verdade, que não apenas aquela que a racionalidade técnica nos fornece. Há uma verdade ética, por exemplo, que nos impede de seguirmos adiante. Uma verdade que não se apóia na lógica pura, mas no respeito pelo Outro. Se tenho a garantia de que, por exemplo, poderíamos nos mudar, com tranqüilidade, para Marte, desde que investissemos em tecnologia que poderia acelerar a destruição da Terra, seria ético fazê-lo? Ou existe um dever moral do homem de não se comportar como um vírus, como o Agente Smith, de Matrix, nos chamava?

A questão, por isso, está longe de ser puramente teórica. O que eu afirmo é que existem outras verdades além da verdade da técnica, que se justificam com base em outras racionalidades. A racionalidade meio>fim da ciência pode ser útil, mas jamais esgota as questões que ela provoca. Quando estamos no mundo concreto, as decisões sempre carregam interesses; jamais são puramente neutras.

O que fazemos? Ao acreditar no mito da ciência como verdade absoluta, estamos dando de bandeja ao poder a opção de decidir os caminhos da técnica, que não dependem dela própria. A técnica não pensa sobre si mesma. Quem pensa é quem está fora: a política, a ética, a estratégia, a economia. Hoje em dia, o poder avaliza apenas o que a ciência lhe concede. Esse é o poder da ciência.

Poder que, no aquecimento global, fica claro: ninguém duvida das investigações científicas, da sua qualidade e validade objetiva. O que duvidamos é, sim, a capacidade de ela dar respostas aos problemas que traz. Esses problemas, quando estão lançados no mundo concreto, dependem de outras racionalidades. Racionalidades que dependem da nossa cultura, dos nossos significados e do "mundo" que criamos.

É por isso que o filósofo Emmanuel Lévinas propõe que, diante dessa pluralidade de significações, adotemos, em primeiro lugar, uma ética. Estamos jogados no mundo ontológico, no qual nos deparamos com nossa condição humana, nossa finitude, nossa vontade de persistir existindo. Esse é o mundo em que vivemos; não o mundo dos enunciados científicos ou das argumentações analíticas. Mas será que, quando me encontro com os outros, será só isso decisivo? Ou será que posso, nessa condição que se instaura antes e para além da técnica, assumir uma posição em que, por primazia, sou ético? Antes de qualquer argumento lógico-analítico, antes de qualquer verdade vinda de uma ideologia, de um sistema político, devo me instalar nesse mundo enquanto um ser ético.

Isso muda a compreensão do fenômeno do aquecimento global: será justo, EM PRIMEIRO LUGAR, o homem aquecer o planeta de modo a destruir a vida nele? Essa pergunta a ciência não responde, porque não pensa com racionalidade ética.

Alguém poderia objetar: mas é só graças à ciência que conhecemos o problema. De acordo. Mas é também só graças a ela que o temos. Tivéssemos freado nosso ímpeto de dominar a natureza há mais tempo, não o viveríamos. É imperativo, por isso, pensar com outra racionalidade.
Em síntese: precisamos perceber que, quando estamos lançados no mundo, o rigor dos enunciados abstrato-analíticos não significa muita coisa, pois se constitui sempre como prática interessada. É dessa prática interessada, propriamente, que temos que tratar, a partir de novas racionalidades que nos permitem não repetir nossos erros.