Cotas - uma vez mais
Uma das contribuições do pensamento do filósofo Martin Heidegger -- com antecedentes notáveis, especialmente em Franz Rosenzweig -- é a idéia de que todo pensamento que o antecedeu sempre se manteve "metafísico". Esse pensamento -- que ele apelidou "onto-teológico" -- não se dirigia à realidade concreta, nua e crua, em que ele se situava, mas sim a situações abstratas imaginadas pela cabeça do pensador. Ou seja, havia uma pretensão de teorizar para além do mundo concreto, em direção a uma situação abstrata que se aplicaria a todos os casos. O pensamento não era apenas universal no espaço; era, também, no tempo. Não apenas se aplicaria a todos os povos, em todas as circunstâncias, mas também a todos os tempos, teria o condão da eternidade.
Esse é o nó que Heidegger identificou em tudo que lhe antecedeu, de Platão a Hegel. E, pelo fato de o pensamento científico ter a mesma pretensão, Heidegger foi quem, curiosamente, teve a ousadia de chamar o cientificismo de "metafísico", trauma que nunca foi perdoado pelos neopositivistas [hoje, na filosofia analítica], a quem não poderia ser dirigida pior ofensa. Por pensarem em estruturas "eternas" e aplicáveis a todos, ou seja, universais no sentido vertical e horizontal, Heidegger apelidou o pensamento até então de "onto-teologia". Pensamos as coisas [onto] como manda a teologia -- a partir de esquemas eternos tal como a vontade divina. Chame-se isso de "espírito", "proletariado", "mundo das idéias", "vontade" ou qualquer das principais palavras usadas pelos filósofos, o que estaria em jogo seria sempre uma ausência do "mundo da vida" nesses esquemas.
Heidegger propõe, ao contrário, que o pensamento se dá aqui embaixo, no mundo. Ele propõe que pensemos o mundo não a partir de um super-esquema que esgotaria todas as possibilidades, mas sim de nossa concretude existencial. Por isso, o tempo passa a ser um elemento fundamental da filosofia heideggeriana. O pensamento sempre tenta "exorcizar" o tempo, que confunde esquemas lógicos pela contingência que suscita. Heidegger propõe não o exorcizar, mas precisamente pensar a partir do tempo.
O que significa isso? Que pensar em situações abstratas, via de regra, é algo improdutivo e ingênuo. Pensamos a partir do nosso mundo e esse mundo é nosso, ou seja, não é universal nem eterno. O mundo se constitui a partir do que nos está à mão -- somos formadores de mundo.
Ao admitir isso, Heidegger dá um passo que poucos compreenderam. Ao dizer, por exemplo, que um martelo é, antes de tudo, uma ferramenta [seu uso manual], e não madeira, ferro e parafusos, como pretende a ontologia [o conhecimento que pergunta pelo o que é isso? das coisas] tradicional, Heidegger se desvencilha da idéia de "essência" e passa a considerar as coisas a partir do que elas são no mundo -- mundo que nós formamos.
O que isso tem de relação com a questão do título do post?
Significa que, ao pensarmos a questão das cotas, é pouco produtivo irmos atrás de esquemas universais. Precisamos admitir que estamos lançados no mundo em que vivemos, e é a partir dele que devemos pensar.
Que mundo é esse? Sem hipocrisia: um mundo do homem branco, adulto, ocidental, heterossexual e rico. Sem querer satanizar nenhuma dessas categorias [aliás, só não me enquadro na última; e, ainda assim, em padrões brasileiros talvez possa me enquadrar], a realidade não mente: são essas as categorias hegemônicas.
O filósofo Jacques Derrida apelidou isso de "falogocentrismo" [falo das metáforas masculinas, logo de lógos, pensamento racionalista etnocêntrico -- combinando-se em uma estratégia de "dominação racional"]. Ele pretendeu denunciar a "mitologia branca", ou seja, a idéia de que o que nos é passado é "branco", "transparente", não representa nenhum desses poderes hegemônicos.
Também Michel Foucault contribuiu grandemente para o enriquecimento dessa perspectiva, ao trazer para a fala os marginais, ou seja, homossexuais, loucos, criminosos, etc. Ao mostrar a influência do poder [que não é centralizado, mas esparramado por todas relações sociais], Foucault igualmente desmitifica a "transparência" da nossa cultura.
Essas reflexões servem para um único argumento: não é possível dizermos que existe "discriminação aos brancos". Salvo em contextos absolutamente isolados, que não representam 1/1000 do contexto social hegemônico, o branco não é discriminado. Com esse argumento, pretendo afastar todas as justificativas contra as cotas que dizem que, ao colocarmos um negro em lugar de um branco, estamos discriminando o último, cometendo ato de racismo.
É óbvio que a discussão não se resume a isso. Há vários argumentos em jogo. Só que a minha pretensão aqui é apenas afastar um. Cada um deles pode ser rebatido com uma argumentação cautelosa, como tento fazer por aqui.
Dizer que um branco pode sofrer racismo só pode significar um pensamento sem historicidade, um pensamento sem tempo. Na nossa realidade concreta, ele simplesmente não faz sentido. Só faz sentido em esquemas abstratos, em um mundo da argumentação lógica, como ocorre na filosofia analítica. No mundo da vida, ele simplesmente vai solto no ar, como se fosse um pássaro, e se perde no horizonte. É nonsense.
Há outras questões a serem enfrentadas. Mas aí já é assunto para outros posts. O que eu queria deixar aqui é só isso: para pensar as cotas, temos que ter pensamento com tempo, senão elas se tornam discriminações odiosas.
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Trilha sonora do post: Black Rebel Motorcycle Club, "Berlin".