A MALDIÇÃO DE SILENO
Consta na Mitologia Grega que Sileno era um sátiro, preceptor de Dionísio, deus do vinho, sendo conhecido por seu constante estado de embriaguez e por ser o mais velho e sábio dos companheiros daquele deus.
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O Rei Midas, ansioso por aprender com a sabedoria do sátiro, de tudo fez até capturá-lo: finalmente, com um licor especial, conseguiu embriagá-lo de forma a torná-lo presa de seus súditos, que o levaram até o rei. Perguntado sobre qual seria a melhor das coisas para o homem, Sileno quedou-se silente, até o momento em que a insistência do Rei Midas foi insurportável. Irritado, Sileno proferiu: "Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer".
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Essa história foi utilizada por Nietzsche, na sua obra da juventude "O Nascimento da Tragédia", na qual pela primeira vez ganhou contornos a sua célebre distinção entre o apolíneo e o dionisíaco.
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Mais de um século após, o filósofo Emmanuel Lévinas trouxe a noção de responsabilidade pelo Outro. Rebatendo a "perseverança no ser" de Martin Heidegger, noção que trazia a idéia de que o homem deve buscar a sua própria autenticidade a partir da consciência da própria morte, buscando aquilo que constitui sua "minheidade" em detrimento do "medíocre", "banal", do "a gente", Lévinas opõe a idéia de que o meu "eu próprio" só se constitui a partir da responsabilidade pelo Outro. Eu, quando me constituo enquanto Eu, já sou refém do Outro. Como seria possível isso? Como poderia existir uma responsabilidade pelo Outro que anteceda mesmo a minha necessidade de auto-conservação? Antes de sobreviver, existe ainda o dever de ser responsável -- sem álibi ou escusas -- pelo Outro?
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Responsabilidade anterior a qualquer outra. Que chega, no momento em que me constituo sujeito. Já anteriormente à percepção do Outro, da sua presença, essa responsabilidade chegou, numa ordem estranha ao saber. Como podemos explicar o que sentimos quando contemplamos o rosto de um completamente estranho enquanto o vemos sofrer? Apenas empatia? E quando esse Outro é totalmente Outro -- quando vemos que jamais estaremos naquela situação -- mesmo assim não existe um laço de responsabilidade que nos une? Não existe uma responsabilidade que chega antes mesma da sua racionalização, uma responsabilidade pura e simples gravada no Rosto da outra pessoa?
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Lévinas admite isso como algo doloroso. Não promete palavras fáceis. Ele mesmo admite o peso das suas concepções.
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Não é exatamente esse peso que não dá razão a Sileno? Que poderia ser mais conveniente que não ter nascido, simplesmente? Não ter que enfrentar originalmente toda a crueldade dessa vida, todas as desavenças, toda a maldade humana, toda corrupção do nosso mundo... Seria um alívio. Não ter que ler nos jornais que a maioria das pessoas quer jogar adolescentes nas masmorras. Não ter que saber que para a maioria das pessoas a solução para os problemas é, simplesmente, destruir os Outros. Não ter que enfrentar os desafios da vida, o constante não-acontecer daquilo que desejamos... Alívio!
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O próprio sátiro, adverte, contudo, que seria impossível... Mas então por que não a morte, simplesmente? É o peso infinito da responsabilidade pelo Outro, que transcende a minha persistência no ser, que me joga em uma condição onde não estou apenas devedor de mim mesmo e da minha autenticidade, mas sou eleito a carregar o peso de todo o mundo. A partir da minha constituição como eu, não sou mais apenas "eu" que estou em jogo, mas o mundo todo. Eu não dis-ponho de mim mesmo. Eleição indeclinável, que surge quando a responsabilidade toma forma e, a partir de então, jamais de despede.