O Liberal e o Marxista
Eu sempre venho tentando por aqui traçar as diferenças e semelhanças entre o liberal e o marxista, de forma a atenuar ou acentuar algumas distinções que estão no senso comum. Por exemplo, a de o primeiro é de direita e o segundo de esquerda. Existe esquerda liberal, Richard Rorty, John Dewey e Ronald Dworkin são exemplos.
A questão da prostituição é um bom exemplo da distinção de postura entre o liberal e o marxista. Recentemente, como sempre em tom oportunista, circulou um spam que "denuncia" a presença de "estratégias de conquista" às prostitutas no site do Ministério do Trabalho. Como sempre, uma agressão ao Governo, na forma moralista, simplista, reducionista. Aliás, o que pouco se falou foi que isso consta desde a era FHC. Mas não é esse o ponto.
Os moralistas de direita, ao adotarem o tom de "denúncia", franqueiam um debate interessante, que opõe esses dois perfis políticos. Enquanto o liberal tem uma visão minimalista de intervenção do Estado na vida privada, considerando que é a cada um que diz respeito as decisões sobre a sua vida, o marxista tem postura paternalista, tratando a todos como "explorados" e "vítimas" do sistema.
É claro que existem vítimas. Salvo os idiotas, ninguém discordaria de que prostituição infantil ou qualquer modalidade neoescravagista -- que costuma cair nas populações pobres -- é, simplesmente, exploração, e deve ser reprimido enquanto tal. O caso fica difícil, no entanto, quando se trata daquela mulher que, livremente, decidiu usar seu corpo para ganhar dinheiro: a prostituta de luxo.
A Senadora Heloisa Helena, representante do velho marxismo xiita, como seu partido, manifestou "indignação" com o site do Ministério, tratando o caso como mera exploração de mulheres "alienadas", usadas no seu corpo. A elite burguesa coloca o patrimônio acima do próprio corpo, e faz com que elas priorizem o consumo à própria dignidade.
O que um liberal diria? Ora, antes de tudo vivemos em uma época em que tudo é líquido, valores e padrões morais. A cada um cabe decidir seu destino. Se, livre e espontaneamente, a mulher decidiu usar seu corpo para ganhar dinheiro, nada se pode fazer para impedi-la. Mais uma vez, nossa interpretação cristã do corpo como algo pecaminoso, e do sexo como algo sujo e desonroso, influi ao considerarmos a prostituição "indigna".
Uma faxineira ou um advogado também vendem seu corpo, cada um à sua maneira. É o tabu do sexo que nos assusta. O advogado vende sua inteligência para, muitas vezes, chancelar condutas reprováveis. A faxineira tem que se submeter à chefia, supervisão, a trabalhos tormentosos. Por que uma mulher -- ou um homem -- não pode decidir fazer sexo por dinheiro?
Como eu sustentava, é aqui que se separa o marxista do liberal.
O marxista acredita ter uma visão privilegiada do mundo, uma visão que afasta o epifenômeno, a ideologia, que supera a alienação e "ilumina" a consciência do explorado. Assim, para o marxista, a prostituta apenas não tem consciência suficiente: ela não pode decidir de forma diversa.
O liberal, por sua vez, não tem uma idéia de visão de mundo tão ampla. Sua idéia fundamental é, principalmente, retirar do domínio do "público" (portanto, do Estado) a discussão sobre certas matérias, que são de decisão individual. Assim, como a prostituição, no final das contas, envolve fundamentalmente uma questão moral, não cabe ao Estado decidir sobre ela. É o que acontece, por exemplo, na Holanda, o liberal dos países liberais.
Claro, tem mais gente nesse debate. Igreja, conservadores de direita, etc. Quis apenas ressaltar como, dentro de uma própria visão de esquerda, é possível haver divergências bem fundamentadas.
Viram como o site do Ministério do Trabalho pode dar uma discussão interessante? Agora, se vocês preferem denuncismo conservador contra o PT, fiquem com ele. Inteligência nunca foi privilégio de muitos.