Anatomia de um sonho
Mercury Rev, "The Deserter's songs" (1998).
O sonho é um tema que percorre a história da arte. Podemos lembrar dos românticos, como Novalis e Calderón de la Barca, de Shakespeare, Kafka, Rimbaud, Baudrillard, Mallarmé ou, mais recentemente, de Lennon. Outros domínios também se aventuraram por aí e - mais de que todos - foi a psicologia com Freud que explorou o universo onírico como nunca antes fora explorado.
Todos esses artistas pretenderam borrar as fronteiras entre o onírico e o real, ampliando os limites da nossa fria razão. Ampliando nossas percepções, escapamos da realidade nua e crua, excessivamente dolorosa aos olhos de quem realmente pretende vê-la.
Ao ouvir "The Deserter's Songs", da banda Mercury Rev, a intersecção entre sonho e música definitivamente se consolidou. O disco foi lançado em 1998. Um dos integrantes, Dave Fridmann, é também produtor do Flaming Lips, banda com a qual eles se assemelham (alguns até falam de "bandas gêmeas"), mas, enquanto o Lips nos jogam numa atmosfera de psicodelia e LSD, o Mercury Rev nos estabelece no mundo dos sonhos.
"Deserter's" é um disco conceitual. Um disco em que as músicas estão amarradas, visivelmente há uma intenção de que seja tomado como uma coisa só, algo esplendidamente pretensioso, mas que foi capaz de nos trazer obras como "Sgt. Peppers", "Ok Computer" ou "The Dark Side". E a jornada é bem sucedida.
Assim como o Spiritualized, o Mercury Rev carrega o rótulo de "dream pop". Mas, como nunca, esse rótulo combina com o som. Porque, ao mesmo tempo em que a leveza das melodias e o vocal suave trazem uma dose pop, tudo parece se passar em uma outra dimensão, onde experimentalismo e os teclados etéreos nos transportam. Ao ouvir "Deserter's", me senti numa espécie de limbo, entre as nuvens, onde a brancura e pureza predominam. Há momentos tensos, como explosões de pesadelos, tensões, mas tudo se passa em outra dimensão. Definitivamente, eles pertencem a outro mundo.
"Holes", "Tonite it shows" e "Endlessly" pertencem ao mundo dos sonhos calmos, tranqüilizantes, viagens em nuvens brancas. Diferentes instrumentos como saxofones, sintetizadores, corais, violinos e flautas se alternam em um experimentalismo discreto, agradável, sutil. O vocal é doce e suave, além de natural. O som oscila grandiosamente, de um pop até elementos de valsa, como se entre anjos estivéssemos. Tudo é paz. Planamos sobre o horizonte. Voamos pelo nosso inconsciente, nas costas dos anjos.
"I collected coins" é um interlúdio mágico, lúdico, que conecta a atmosfera dos sonhos com "Opus 40", esta ligeiramente parece menos onírica que as demais, embora a melodia seja igualmente doce, mas menos "pura". Em outras palavras: rock. Aqui, parece que os anjos nos deixaram aterrizar. Paramos para conversar com as nossas ilusões. Os mesmos elementos combinados de forma diversa, com refrão mais forte, mas primando absolutamente pela harmonia. Um pacífico assovio nos demonstra a tranqüilidade do experimentalismo do Mercury Rev, levado sem qualquer sensação de desconforto ao ouvinte. Aí, como eu disse, está o "pop". Um saxofone em "Hudson Line" é o destaque, conduzindo a melodia na mesma calmaria, com direito a alguns solinhos de guitarra. Lembrem-se, ainda estamos sonhando, mas pousamos.
Mas nem sempre o onírico é pacífico. Em "The Happy End (The Drunk Room)" somos jogados em uma espécie de prisão tensa, aterrorizante, um quarto caustrofóbico onde as paredes se movem, o ar se comprime, tudo fica sufocante. O "País das Maravilhas" na sua faceta terrível. Um piano barroco repete as mesmas notas como se fosse uma metralhadora.
E, depois do inferno, conseguimos fugir para mais uma música agradável, mas aqui mais recheada. Voamos, pousamos, fomos sufocados e, agora, nada mais é branco. "Goddess on a highway" é cinza. Nem branco, nem preto. Guitarras e teclados brincam e temos um clima que lembra "Ok Computer", onde gélidas harmonias desembocam em agudos prolongados, especialmente por timbres altos de guitarras tocados de forma agressiva.
E então, a melhor. "The Funny Bird" é robótica, o vocal se despedaça em efeitos, a melodia começa pop, porém aos poucos vai engordando, até desembocar em fúria no refrão. Aqui, definitivamente, a guitarra é a protagonista. O som cresce e se torna até agressivo, em um solo pedalado que traduz gritos por todos os lados. "The Funny Bird" é psicodelia onírica. LSD mergulhado no sonho. Tudo parece estar despedaçado e sem sentido, não há mais unidade, tudo parece fragmento. Jogados em um local espacial, desconhecido, cheio de explosões e harmonia, contraditório, fragmentado, instável.
Depois da tempestade, uma nova dimensão. Me lembro de "2001: Uma Odisséia no Espaço", quando o viajante passa por um série de locais estranhos para desembocar naquela sala, solitário, um local tranqüilo mas inóspito, com uma aura indecifrável de mistério. Talvez nessa mesma sala caia a viajante das canções do deserto, em "Pick up if your there". Um teclado triste, um canto agoniado de uma máquina, robótico, desta vez mais parecido com o belo "Kid A" (2000). Um grito perdido das máquinas. Que termina em uma narração de fundo, parecendo vir da nossa própria mente, bem interna.
Depois, a dança. Tantas viagens diferentes, o branco, o negro, o cinza, a tempestade, a máquina e, no final, a celebração dionisíaca. Aqui, em "Delta Sun Bottleneck Stomp" finalmente o experimentalismo do Mercury Rev se propõe a criar uma melodia mais alegre, celebratória, dionisíaca. Deus finalmente dança. Aqui temos uma certo parentesco com a música eletrônica, especialmente Moby e sua freguesia. Ainda uma homenagem, creio eu, aos Doors, cantando o vocalista "Hello, hello, hellooooo", ao sabor do rock eletrônico.
A música se interrompe aos 3min40 e retorna, completamente distinta, aos 4min20, onde tudo parece uma brincadeira de Tom e Jerry. Ouçam e me digam se entendem. Mais um arranjo clássico, repetindo estruturas já antes exploradas pela banda, para brincar de gato e rato com nossos ouvidos. E "Rag Tag", silêncio.
Depois do disco, acordar: tristeza.