ASSUJEITAMENTO
O filósofo Michel Foucault foi o primeiro a tomar a sério o poder como algo constituinte da maioria dos nossos conceitos. Nietzsche e Heidegger já haviam tido antecipações geniais sobre o tema: mas somente Foucault enovelou todos esses insights até chegar ao poder como categoria central do pensamento.
A principal inimiga de Foucault é a chamada "filosofia do sujeito", uma tradição que se estendeu desde René Descartes e encontrou seu ápice no pensamento iluminista, que consistia na idéia do ser humano como um ser racional, com um centro de crenças imutáveis que constituiria seu "eu", do qual o restante, desejos, pulsões, crenças seriam apenas periferia contingente. Esse "centro" seria a-histórico e a-social, composto por um núcleo racional que todo ser humano possuiria.
O que Foucault pretendeu mostrar, atacando o iluminismo, a psicanálise e outras construções modernas foi, basicamente, que o "sujeito" como "centro racional" era um conceito que ignorava o fato de que, basicamente, somos esmagados pelas estruturas de poder que nos governam. A escola, o trabalho, as diversas instituições que temos que passar ao longo da nossa vida nos impõem uma estrutura disciplinar que a todo momento nos "adestra", tornando-nos "sujeitos dóceis" moldados pelo poder. Esse "centro", por isso, não só não existiria, porque somos uma seqüência de contingências, como ainda seria basicamente um "molde" que o poder tenta nos enxertar, com seus rituais disciplinares (rituais que Foucault identificou nas escolas, prisões, conventos, manicômios, tribunais, consultório psiquiátrico, na filosofia, etc.). Esse "poder disciplinar" que forma o sujeito foi muitas vezes chamado de "poder panóptico", com referência à construção de presídio pretendida pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, uma obra em que todos os presos poderiam ser vistos simultaneamente sem enxergar quem os espionava, numa estrutura circular totalizante.
Foucault, ao trazer o "poder panóptico" para o centro da filosofia, substituiu, com uma certa ironia, a idéia de "sujeito" pelo "assujeitamento". Em vez do sujeito livre e racional do iluminismo, o confinamento a estruturas de poder serializantes - assujeitamento.
Pois foi exatamente do "assujeitamento" que me recordei ao ver "Manderley", a continuação do genial "Dogville". Grace, que recém saía daquela vila maldita, acaba caindo no Alabama, em uma fazenda que, mesmo 70 anos depois da abolição da escravidão, continua mantendo aquele regime. E, indignada, em poucos minutos, com a ajuda dos gângsters do seu pai, toma o poder e pretende fundar uma "nova comunidade", dessa vez baseada nos ideais norte-americanos da igualdade, do trabalho, da tolerância e da democracia. Grace aposta que, em pouco tempo, concedendo-se a liberdade aos escravos, eles poderiam se transformar em "seres autônomos", cheios de liberdade e razão, e se livrar da auto-imagem escrava.
Mas Grace subestima o "assujeitamento". Não vou dar mais detalhes do filme, que se passa nos mesmos moldes de Dogville, com a estrutura de capítulos e cenários vazios. O que Grace não sabia, e as formas da democracia americana, construídas com base iluminista, também ignoravam, é que o "sujeito livre e racional" do iluminismo não existia, mas sim um complexo de estruturas que nos transformam no que nós somos. E, a todo momento, Grace irá se chocar não com o "sujeito negro"; mas com o "assujeitado" negro. A estrutura escravagista, Grace ignora, é maior do que uma mera decisão racional dos participantes naquele momento, é mais do que uma imposição com uma "espingarda" e uma "arma de brinquedo" (únicas armas dos fazendeiros). A estrutura escravagista já havia "assujeitado" todos os negros daquela fazenda.
É justamente nesse ponto que a "esquerda cultural americana", uma corrente política formada a partir da universidade, do movimento negro, gay e das feministas, apoiados em Foucault (cuja influência nos EUA foi maior que na própria França), insiste, desde o final da década de 60, ao propor privilégios especiais "compensatórios", como as cotas para negros e mulheres. Segundo essa tendência, a mera ampliação do Estado Liberal não é suficiente para liberar esses oprimidos das estruturas em que estavam presos. É necessário algo mais.
A "esquerda cultural" americana pode estar certa ou não. Richard Rorty, por exemplo, acha que essas disputas "transversais" acabaram enfraquecendo a verdadeira esquerda norte-americana, aquela que lutava por melhores salários, condições dignas de vida, etc. O filme "Crash", que andei comentando aqui, também mostra um lado triste dessas políticas, um certo esquecimento, preso a essas identidades engessadas (negro, mulher, judeu, árabe, gay, etc.), do Rosto original, de que fala Emmanuel Lévinas, uma consciência que, ao se defrontarem com momentos críticos os protagonistas, readquiriam, restituindo o sentido humano nas relações sociais. De qualquer forma, Manderley problematiza a viabilidade de estendermos as instituições liberais, pura e simplesmente, ignorando as estruturas de poder que formam, inconscientemente, nossa visão de mundo.
Enfim, "Manderley" é um filme essencial por não ser eufemístico ou mentiroso: é um filme até certo ponto cínico, cínico o suficiente para desmascarar nossas crenças que escondem a realidade ao nosso redor.