Mox in the Sky with Diamonds

terça-feira, junho 29, 2004

Não tão confortável...
- Apesar de ainda não me sentir ainda totalmente confortável nesse blog, que não tem um template tão legal quanto o anterior, além de me exigir conhecimentos html que não disponho, vou tocando. O blog também não parece estar tão confortável para os leitores de hábito, que não têm vindo aqui com a mesma freqüência. Contrariando a tendência normal, vou ter que pedir desculpas para publicar um post só sobre "Dogville", tal foi o choque. Tinha mais coisas para falar, mas, depois do filme, tudo ficou soterrado.

Dogville - O Ontem, o Hoje e o Amanhã (será?)

Dogville é um tratado sobre a estupidez humana? O que pode nos dizer sobre nós mesmos uma vila com menos de 15 habitantes, sendo todos protótipos de "losers"? Nada?
É de Nietzsche a velha distinção entre a moral de rebanho e a moral viril. No final das contas, as forças da evolução não seriam exatamente como Darwin descreveu: os fortes vencem os fracos, mas o contrário, porque os fracos teriam maior número e maior capacidade de coesão. Coincidência? A história das massas é uma história de crueldade. Foucault contava das torturas medievais que eram aplaudidas por multidões. Condenar é o mais fácil. Compreender o diferente, o misterioso, é o difícil.
Vivemos num mundo em que a intolerância ainda é a regra maior. Todos clamam por punição. Escondidos nas suas crenças incoerentes, julgam os outros e se aproveitam no seu anonimato. Dogville é o movimento incoerente e avassalador no sentido da destruição do diferente, do que não fala a língua da massa. Uma massa de "Smiths", todos iguais, todos vazios, todos malvados. A crueldade se alastra quando está escondida nos ecos. Dogville é uma epopéia, epopéia do homem comum que se reúne e, com seu poder, age sem tolerância com o diferente. A história é uma das que mais repete na história da humanidade: Jesus, Sócrates, Nietzsche, Galileu, Spinoza, etc.
Ninguém me diz por que devo ser igual; dizem apenas, forçam-me a ser.
Dogville não é só isso. É também a raiz de toda incoerência - a sede de dominação. Os instintos mais baixos - a sexualidade, a opressão, a tortura psicológica - todos aqueles prazeres mais subterrâneos escondidos, e reprimidos, num manto de hipocrisia social. Por trás da reunião, da rotina e do trabalho, toda veste do homem comum, do padrão social, uma necessidade infinita de julgar e condenar, de prender, torturar e escravizar, até quase matar. O "homem médio" esconde o recalque, o ressentimento. E a maioria, a quantidade, o faz pensar ter a razão ao seu lado.
Por trás de toda arquitetura do social está esse terrível fato. Se você foge do controle, se você tenta ser mais, sempre haverá uma massa a tentar destrui-lo. A história do controle é a história da destruição do diferente. Dogville (o filme) é o espírito bom que se diferencia, e por isso é punido. A maioria, a localidade, a medianização, a padronização, tudo isso se soma e procura destruir o estranho, o estrangeiro, o diferente.
Não pude resistir a analisar Dogville sob esse enfoque, nietzscheniano e pós-moderno. Não vi somente a tradicional e comum "maldade" escondida por trás de cada ser humano. Pois a maldade é uma palavra, e como tal não me interessa em si mesma. Não, o que me interessou de fato foi como se organiza o controle para reprimir e se aproveitar daquele que foge dos seus mandamentos. A perseguição policial é simplesmente uma metáfora, metáfora desses dias de estigmatização, em que aquele que tem problemas com a justiça passa a ser punido enquanto pessoa danosa, não somente pelo fato que cometeu.
Aliás, que fato cometeu ela? Alguém perguntou? Não interessou a ninguém. O que realmente interessou foi a sua diferença em relação aos normais, àqueles que nunca viram a polícia, que nunca se envolveram com gangsters. Normais que, unidos, massacram e impõem penas muito mais severas que aquelas que seriam aplicadas pelo direito penal. Normais que se escondem na sua atitude comum e agem de modo fascista, rejeitando tudo aquilo que não espelhe sua própria "localidade".
Paredes que não existem e não nos separam: são imaginárias. Todos inseridos no mesmo cenário, aberto e propenso à invasão, todos trabalham conjuntamente numa estrutura que reprime a não-repetição. Uma fórmula de horários que esmaece e decepciona novas subjetividades, que lá pretendem se jogar para a melhoria, mas são engolidas por uma arquitetura de poder que impõe a disciplina como forma de obstar a mudança. O filme não precisa de cenários: é uma aventura hiper-real.
Dogville ainda dá uma espetada nos "intelectuais". Intelectuais que, num bojo de infinitas idéias inúteis, ineficazes ou utópicas, não chegam a lugar algum, a não ser caminhar de um lado a outro da praça, para novamente sentar no banco e refletir mais e mais inutilidades. Intelectuais que, sob o pretexto da pureza, afastam-se do núcleo de poder quando realmente se decide algo, ou isentam-se, sem tentar penetrar nas coisas sujas e podres que guiam as maiorias.
O filme tem muito a dizer: fala sobre nós, sobre o controle penal, sobre as maiorias silenciosas, sobre a maneira que convivemos com os "estigmatizados", sobre a situação do país e dos intelectuais que têm solução para tudo, sobre o vazio incoerentes das decisões fascistas que massacram o diferente, o que está aí, dia-a-dia, nos jornais, na nossa cara, e ninguém nota.
E o final? Pura catarse do autor. O final é a única marca realmente pessoal - e revolucionária - do autor. Um grito perdido na multidão.


Trilha sonora do post: Radiohead, "Exit Music (for a film)" (uma música que me traz uma sensação transcendental e daquelas que, ao lado de "How to Disappear Completely", eu escolheira para morrer, com o perdão do teor escatológico).